Em Tabatinga, os carros têm duas rodas. Sim, porque fica difícil perceber as onipresentes motocicletas apenas como motocicletas. Na pequena cidade amazonense, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, elas fazem as vezes de carro. Levam a família toda. Duas, três, quatro, cinco pessoas. Também dão uma de utilitário. Carregam colchão, antena parabólica, cachorro, mesa, cadeira, televisão, caixas... Ao guidão, nem sempre aparece um maior de idade com habilitação no bolso e capacete protegendo o crânio. Cena comum é ver garotos de 15 anos e chinelo acelerando com a cabeça a céu aberto. Os forasteiros coçam os olhos para acreditar na extraordinária paisagem urbana.
O agente Chicão, chefe da base Anzol, uma das responsáveis pela Operação Cobra na selva entre o Brasil e a Colômbia, está acostumado a enfrentar de metralhadora em punho quadrilhas de traficantes que navegam pelo rio Solimões. Mas ainda não se sente à vontade em terra firme, a bordo de um Corsa Sedan, pelas ruas de Tabatinga. "As motos estão por todos os lados. Botam medo na gente", diz o policial federal. Não há números oficiais, mas chutes arriscam que elas são mais de 20 000, contra apenas 1 500 carros. "De cada dez pessoas, seis têm moto", calcula o coordenador de transporte da cidade de 45 000 habitantes, Andson Souza dos Santos.
Impossível dizer se é a cidade brasileira com maior relação de motos por carro, já que nem o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) consegue refletir a realidade - seria preciso ir além dos dados das motos registradas. Apesar de Tabatinga contar com apenas duas concessionárias (Honda e Yamaha), circulam pelas ruas da cidade motos com logotipos dos mais variados. Além das conhecidas Suzuki, Kawasaki e Sundown, tem Kin Kow, Chin Chen, Baja, AMC, Alteco, Senke... Todas vêm da Colômbia. Como a fronteira entre os dois países resume-se a meia dúzia de cones e uma lombada, não há controle policial e troca-se de país como quem atravessa a rua.
Preferência nacional
O acanhado tamanho da cidade amazonense, a falta de postos de gasolina e a presença maciça das mototáxis explicam a supremacia das motos na cidade. Mas rodar sobre duas rodas é uma tendência no Brasil inteiro. Em 2006, foi vendido 1,27 milhão de motos, contra 1,83 milhão de carros. Segundo Tiago Salvestrini Franceschini, analista setorial da consultoria Lafis, as vendas de motos devem superar as de carro em 2010. "Com preços acessíveis e financiamento facilitado, elas são a primeira opção na hora de escolher um meio de transporte", diz Tiago. Uma moto recém-lançada pela Honda, por exemplo, tem financiamento com mensalidade de 74,76 reais. Em Tabatinga há ainda outro fator que dá pontos às motos: não existem estradas - para ir embora, apenas de avião ou pelo rio Solimões. Portanto, veículos servem apenas para rodar dentro da cidade. No máximo uma escapada até Letícia, do lado de lá da fronteira.
Mas cuidado: lá tem guardas de trânsito e o uso do capacete é cobrado. Os brasileiros alugam o "acessório" em bancas de rua por 1 real a hora para poder rodar no país vizinho. Em Tabatinga, não há fiscalização nenhuma. E o único farol da cidade esteve quebrado por quase um ano - foi consertado em dezembro. No ano passado, 40 pessoas fizeram curso para agente de trânsito, mas ainda falta coragem para colocá- los em ação. "Se a gente começar a aplicar a lei a cidade pára, porque só 20% dos motoristas têm habilitação. As pessoas aqui acham que dirigir uma moto é como andar de bicicleta", diz Andson. O tatuador Marcos Cabreira Saldanha se junta ao coro dos que pedem uma colherada a mais de lei. Ele tem calafrios quando vê as sobrinhas menores de idade seguirem de moto para a escola. "Isso é um perigo, mas é normal por aqui. Ninguém se assusta", afirma Marcos.
Desde o ano passado, começou um esforço para habilitar os motoristas da cidade. Os 400 mototaxistas foram os primeiros a entrar na programação, mas por enquanto menos de 100 passaram pelo processo. Existe uma única moto-escola em Tabatinga e os exames precisam ser feitos pelo Detran de Manaus, que dá as caras ali duas ou três vezes por ano. "A prefeitura quer que todos os mototaxistas tenham habilitação", diz Diogo Hidalgo Filho, presidente da associação dos mototaxistas azuis - existem ainda amarelos, verdes e vermelhos. "Nós conseguimos um acordo com a moto-escola para parcelar o valor em 24 parcelas de 15 reais", afirma Diogo. A idéia é diminuir o peso da medida no orçamento dos mototaxistas, que cobram 1,50 real por corrida e conseguem faturar de 500 a 600 reais por mês.
Na única avenida que corta a cidade e nas pequenas ruas que a ladeiam, os acidentes de trânsito cres cem ano a ano. "Fim de semana, quando muitos arriscam dirigir embriagados, é um atrás do outro", diz Luciane Borba, de 29 anos, gerente da concessionária Honda, que vende uma média de 60 motos por mês. "Oferecemos curso de direção defensiva e sempre insistimos em dizer aos nossos clientes a importância do uso do capacete." Segundo Jackson Julio Batalia Gonçalves, da Secretaria de Infra-estrutura, foram 396 acidentes em 2005 e 526 no ano passado - de cada quatro acidentes, um envolve um menor de idade. O número de mortes é até baixo se comparado ao de acidentes: foram 21 entre 2005 e 2006.
Depois que se acostuma (por bem ou por mal), o visitante entra na onda e por 5 reais aluga uma moto. Mas é bom lembrar que leis de trânsito ali não existem. Vale o bom senso. E bom senso nem sempre é suficiente para definir quem está errado em um cruzamento. Alugue seu capacete, encha-se de cuidado (e coragem) e vá em frente. Afinal, você está no meio da Amazônia e há muito o que fazer por lá.
CARROS X MOTOS
- Tabatinga: 13 motos por carro
- São Paulo: 9 carros por moto
- Rio de Janeiro: 11 carros por moto
CIDADES COM MAIS MOTOS
- São Paulo: 490000
- Goiânia: 140000
- Rio de Janeiro: 123000
28 MILHÕES DE CARROS E 9,5 MILHÕES DE MOTOS CIRCULAM PELO BRASIL
TRÍPLICE FRONTEIRA
Para ir de Manaus a Tabatinga, você escolhe: quatro dias de barco ou três horas de avião
É ÓBVIO
No site www. portaltabatinga. com.br, uma enquete pergunta que tipo de diversão falta na cidade. Só 6% pedem biblioteca. Centro esportivo é o desejo de 15%. Parque para as crianças é o anseio de 36%, enquanto 41% almejam uma pista de motocross.
POSTO MÓVEL
Não há posto de gasolina em Tabatinga. Para abastecer, os brasileiros precisam atravessar a fronteira em direção à Colômbia ou usar as pequenas bancas de madeira instaladas nas esquinas da cidade. Comerciantes brasileiros compram a gasolina em Letícia por 4 reais o galão (3,6 litros) e a revendem em Tabatinga em pequenas bancas improvisadas nas esquinas cobrando 2 reais por garrafa de 600 ml. A garrafa de 2 litros sai por 5 reais.
http://quatrorodas.abril.com.br/reportagens/conteudo_222811.shtml